Vitória tem se tornado cada dia mais uma cidade em
crescimento com os habitantes ainda com pensamento provinciano. Tem sido raras
as noites que consigo encontrar algum eremita iluminado da pista e passar uma
noite semi-boêmia que seja proseando sobre o mundo e nossas rotas. Hoje foi um
desses casos. Que Allah seja louvado por ter conhecido Yuri.
Meu fim de expediente seguiu parado. Queria somente comer um
churrasquinho do gaúcho, tomando minha água mineral com gás e fumando meus
paieiros, mesmo que sozinho, no tão afamado posto. Mas, como todos sabem (ou
deveriam saber...) “Vitória não abre aos domingos”...
Chegando no posto, encontrei uma parada fantasma em beira de
estrada. Dois frentistas sonolentos, nenhum carro, o gerente e um vendedor. E
mais nada. Ontem estava lotado, por conta dum show. Hoje, não se via uma alma
VIVA de fato.
Eis que então entrou o negão, pegando uma bomba de meio
litro de pinga, com sotaque fortíssimo do meu Rio de Janeiro. Prosa vai, prosa
vem, peguei uma breja, a primeira chama a décima, ficamos algumas boas horas
proseando sobre viagens, pé na estrada, rolês na pista, religião, o tudo e o
Nada.
Yuri é seu nome. Meio marroquino, meio brasileiro. Fala
algumas línguas. Quem vê pensa ser um qualquer. Mas, o sangue cigano que corre
em nossas almas bateu bem. Conhece desde Marrocos, até a França. Está com o pé
na estrada há algumas semanas. Quatro dias aqui e ainda não pegou as manhas da
rua. Que me perdoem meus vizinhos, mas capixaba é um povo medroso e ruim de
informação. Nenhuma Ponte da Passagem será mais perigosa que Pavão-Pavãozinho
sem ser morador. Nunca. Nem com UPS, nem com Deus e o Diabo juntos.
Mas, que Allah seja testemunha, aquele homem tem alma cigana.
Exú de frente. Espírito inquieto. Assim
como eu. Andarilho e um vagabundo iluminado. Marca os locais que passa, de
forma imperceptível, p/ saber sempre por onde foi e por onde voltar. Vitória
tem muitas sinalizações urbanas irreconhecíveis p/ quem não conhece o asfalto.
Me sinto mal se vir um muro não pixado por mais de 50 metros.
Mas, ele não é pichador. É um peregrino islâmico. Suas
marcas são sutis e invisíveis a olhos não desvelados. Sabe lutar com faca.
Saudou a faca de combate balinesa, apreendida na rodoviária.
Enfim... Fazia tempo que não escrevia aqui. Meu sangue
cigano nunca cessara, assim como minha alma boêmia. Bebemos o que não tínhamos.
Mas, bebemos, como irmãos.Com um trago e outro no paieiro entre uma prosa e
outra.
Fazia tempo que não encontrava outro caroneiro da pista. Me sinto bem. Hoje
dormireicomo um bebê. As pessoas vão e vêm. Mas, hoje recordei de todos os meus
companheiros ciganos. Me limpou a alma com cerveja e paieiros. Fez meu dia
morto em vivo. Não esquecerei.
Salam Aleykum, camarada!