domingo, 26 de dezembro de 2010

Crônica Natalina - 2010


Três alprazolans, dois copos de cerveja branca. Duas longnecks de Petra na mão. O Centro da cidade não é tão perigoso quanto dizem. Isso se você não tem mais nada a perder. Vão te roubar o que? Apesar d’eu estar com 200 reais sobrando no bolso. Pelo menos teria uma boa briga. Uma facada repentina surgida das sombras, uma garrafada de resposta, a banda do parceiro escondido, os estilhaços da garrafa enfiados no olho, levantando-se rápido pensando “merda, paguei quatro reais nessa longneck”. Um gancho de direita no baço e um cruzado de esquerda no queixo, enquanto tomo mais umas facadas. “Odeio Natal”. Com sorte ainda tomo um tiro e viro belíssimo modelo fotográfico p/ capa de jornal no dia seguinte. Já estava jejuando mesmo, acho que chegava a estar mais esbelto. Quase uma “Garota Colírio” de barba. Eu comeria.
Mas, nada disso aconteceu. Cumprimentei todos. Vagabundos parados em esquinas, pivetes, taxistas, bêbados embutidos de mais espírito natalino do que seria recomendável. Todos. E cheguei de volta ao bar. Sete reais o casco de original. “Maldito Natal”. Os universitários não estavam mais lá. Tinham outros universitários, também conhecidos. Ninguém me convida para sentar. Esses merdas nunca vão saber o que é a vida.

Segui reto. Ainda com a garrafa na mão. Ainda tinha esperanças de ser esfaqueado na surdina. Andei aleatoriamente por vielas. Diminuía o número de taxistas e ébrios amantes de datas comemorativas e aumentava o número de suspeitos a cada esquina. Cheguei perto de dois. Acho que eles estavam com mais medo de mim do que eu deveria estar deles. Acho que é o meu excesso de segurança. Fruto da minha falta de bom senso. Ou da minha falta de amor próprio. Ou do meu amor a arte. Uma ex-namorada minha é fotojornalista. A foto do cadáver sairia linda. Confio no trabalho dela. A melhor do estado, ainda digo. Se algum dia terminar esfaqueado no chão da cidade, quero que ela me fotografe. Coma garrafa na mão ainda. A coisa toda. Nostalgismo com ex exige um pacote completo, não?

Me indicaram uma rua. Segui por outra. Acho que só de marra. Acho que queria muito a foto. Não a consegui, graças a hospitalidade com que o asfalto dá aqueles que a aceitam. Cheguei num trailer e perguntei o preço do latão de meio litro de cerveja e da dose de conhaque de gengibre. Três e dois reais. Elogiei o primeiro como justo e o segundo como caro. Ele ficou feliz e triste. Quase uma máscara tragi-cômica num monólogo improvisado. Puta, encontrei o primeiro artista da noite.

Bebi com um cara que nunca tinha visto. Ele aturou ouvir a triste história da minha vida. Ficou até feliz de ter companhia. No começo achei que ele acharia que eu era viado e que iria querer dar ou comê-lo, e fiquei com mais receio disso depois que ele me pagou um latão. Mas, não. Ele só queria companhia para tomar meia garrafa de dois litros de coca cola enquanto comia um X-tudo. E eu odeio beber sozinho. Me dá idéias suicidas e ânsias vândalas. Ouviu a triste história sem enfado. Me cumprimentou e chamou p/ beber qualquer dia no bar onde trabalha. Comecei o assunto perguntando se aquele bar estava aberto.

Pedi mais umas latas e conhaque. Falei de futebol com o artista. Mestre das expressões dualistas improvisadas. Ele fritava hambúrgueres e eu bebia. Um velho do lado ouviu falar do Inter. O sotaque não negou. A prosa seria boa. A ele se juntou outro. De futebol, os temas passaram por política, religião, música. Falamos de islamismo, cultura grega, as várias guerras nos pampas, o festival Califórnia, o Califado de Granada... Eram verdadeiros conhecedores. Não por livros, mas na prática, na vivência do dia a dia e de prosas, passadas boca a boca, de tempos a mui passados.

Fiquei imaginando aqueles acadêmicuzinhos que gastam as noites cheirando ou nos que sumiram do bar caro ou dos que nem sabem o que é ser minimamente hospitaleiro num bar e te oferecer uma cadeira; e mais todos os tipos pseudo intelectuais, pseudo artistas e, pior de tudo, pseudo boêmios. Ficam falando com toda a certeza do mundo sobre a incerteza da existência e todas as baboseiras políticas, enquanto esses boêmios velha-guarda viveram o que eles falam. Se acham malandros, mas não gostam nem de ouvir de violência e não sabem brigar com navalha. Se acham exímios conhecedores das artes – em especial as populares -  mas só idolatram os poucos que andam por aí com instrumentos caros eletrônicos. Se vangloriam da vadiagem, mas num bebem se papai num pagar a conta do bar. Ou pior, trabalham escondido dos outros! E ainda pagam sete reais pelo casco de breja no Natal!

Bateu duas da manhã. Os velha-guarda tinham família. O teatrólogo-mor estava com a esposa ou filha e queria fechar o trailer e ir dormir. Um dos vagabundos de verdade já tava em casa, tirando um ronco, deitado embaixo da estátua do nosso lado. Os malandros da real tavam só esperando para começarem os corres. Dei feliz Natal a todos, feliz por esse dia de merda ter passado. Cheguei em casa bêbado e com uma única certeza. Como me disse um irmão meu:

"Quem num conhece o mundo num tem conto para contar."